Terça-feira, 26 de Outubro de 2004

As Paisagens Naturais de Portugal Continental!


Por GONÇALO RIBEIRO TELLES
Conservar a Paisagem!

1. A paisagem é, em termos culturais, a expressão mais significativa do território, expressão que melhor traduz a obra de sucessivas gerações na progressiva humanização da terra. A paisagem pode também ser o diagnóstico mais seguro do estado de saúde da crosta terrestre, de cuja complexidade física e biológica depende a existência da vida e, portanto, também da humanidade.
Todas as paisagens se integram em paisagens mais abrangentes até se conjugarem nas formas e no eco global da bioesfera. São, no entanto, as paisagens tradicionais de cada país, criadas e mantidas por cada comunidade que têm significado real e concreto na cultura de um povo, resultando deste facto o interesse na sua conservação. No mundo desenvolvido, as paisagens características de cada país vêm sido assumidas como património único e raro por traduzirem identidades e culturas próprias. A conservação das paisagens tradicionais e das formas e práticas que cimentaram o seu equilíbrio ecológico, é hoje fundamental para uma melhor gestão dos recursos naturais e para a afirmação da identidade cultural das nações.

2. A variedade das paisagens portuguesas é, em grande medida, consequência da diversidade do mosaico geográfico em que elas se inscreveram. Não deixam, contudo, de terem as características da paisagem mediterrânica no essencial das suas formas e na vegetação que as caracteriza. As nossas paisagens são obra de gerações de agricultores, de pastores e de homens dos ofícios de cuja acção persistente resultou a sua utilidade e beleza. A conservação das nossas paisagens tradicionais é, também, uma atitude de modernidade porque se trata não só de contribuir para o desenvolvimento de uma cultura como também de garantir o equilíbrio ecológico do território.
O território português situado na parte mais ocidental da Península Ibérica e abrangendo também as ilhas atlânticas, tem no continente as características do clima e da cultura mediterrânica e, do litoral para o interior, sofre também a influência do Atlântico. O relevo acentuado e o variado mosaico pedológico, num território com pouco mais de noventa mil quilómetros quadrados de superfície, traduz-se numa significativa diversidade paisagística, apesar da cultura comum das gentes, distribuição de campos de cultura e pastagens, de vinhas e pomares, a transformação, da floresta primitiva em bouças, matas e montados, que defendem as culturas e produzem bens essenciais a sociedade, a implantação do reticulado de sebes e muros que servem de protecção às culturas, a trabalhosa construção de socalcos, a regularização de linhas de água, as obras de captação e distribuição da água, a edificação de aglomerados urbanos e de obras defensivas, os castelos e fortes, em lugares apropriados, constituem um património intimamente ligado à nossa identidade cultural.
Tão valioso património é, não só, paleta dinâmica de cores que varia com o correr das estações e dos anos, num ritmo que sugere a eternidade; instrumento musical, donde sobressaem o assobiar do vento, o impacto das ondas nas praias, o canto das aves; a fragrância de aromas que vão desde os dos matos e pomares aos dos cheiros da terra, após as primeiras chuvas; como também é a construção colectiva, apoiada no evoluir duma cultura.
Actualmente, as fronteiras entre o campo e a cidade tendem a esbater-se e, por isso, o mundo rural e o urbano intercalam-se. A "paisagem global" marcará o futuro. Nessa paisagem terão lugar a ruralidade, com o seu património e memória, e a cidade, constituindo unidades estéticas e de funcionamento social.

3. A vegetação natural do nosso país, moldada nas formas biológicas, mais ou menos humanizadas das paisagens, apresenta uma distribuição caracterizada pelas espécies arbóreas dominantes acompanhadas dos restantes elementos da formação. Estas formações, longe de terem fronteiras bem definidas, diluem-se umas nas outras, adaptando-se às características dos solos, às diferentes exposições das encostas ao sol, aos ventos dominantes, ao relevo e altitude.
O carvalho roble ou alvarinho (Quercus robur) domina a Norte, mas também nalgumas zonas setentrionais, surge o sobreiro, especialmente no interior transmontano, onde forma manchas de apreciável dimensão.
O carvalho cerquinho (Quercus fagínea) emerge mais no sul, anunciando o reino do sobreiro, no qual se dilui.
O sobreiro ocupa o litoral alentejano e a serra algarvia, deixando à azinheira a predominância para o interior.
Na serra de Portalegre domina o carvalho negral (Quercus pyrenaica) que também aparece na serra de Monchique, no Algarve. O pinheiro manso ocupa as dunas do litoral. Carvalhos e sobreiros e árvores próprias da galeria ripícola ocupam as margens das linhas de água.
No século XIX o pinheiro bravo substitui muitas das matas de carvalhos então existentes e alguns soutos. Tal facto deveu-se à valorização da resina e da madeira então destinadas a chulipas de caminho de ferro e esteios para as minas da Grã-Bretanha.
Das espécies introduzidas, há também que citar o castanheiro, que, isolado ou constituindo soutos, surge no norte e interior do país e na serra de Portalegre, a laranjeira doce e os pomares de caroço. Na cerca algarvia, surgem indiscriminadamente amendoeiras e figueiras.
A oliveira é um elo vivo de ligação entre as paisagens do norte e do sul, atestando a importante influência cultural do Mediterrâneo em todo o país.

4. Nas paisagens do Norte litoral, as encostas que dos vales foram sendo, a partir da base, ocupadas por socalcos construídos em pedra e coroados com ramadas de vide. Na parte superior das encostas dominam os carvalhais e bouças e mais para o interior as pastagens de montanha.
As ramadas, por vezes, cobrem os caminhos, com o propósito de aumentar a produção e ensombrá-los.
Os campos dos vales mais férteis, são compartimentados por fiadas de «uveiras», árvores que servem de suporte às videiras e limitam os campos de cultura e caminhos. O milho chegado no século XVI, ocupou muitos dos pastos das várzeas e obrigou à construção de socalcos, abertura de minas e poços. Os pastos passaram a ocupar terras mais altas. As paisagens do interior do norte montanhoso, são para Miguel Torga «um nunca acabar de espinhaços, de encostas e planaltos. Um mundo de primária beleza de inviolada intimidade, que ora fugia esquivo pelas brenhas, tímido e secreto, ora sorria de um postigo, acolhedor e fraterno».
A exploração do gado e do mato são o elo que une as diferentes ocorrências ecológicas do sistema: «bouça», «inverneiras» e «brandas». A «bouça» produz os matos necessários às camas do gado e à obtenção de estrume, fertilizante por excelência dos campos cultivados. Nas «inverneiras», onde se situa a casa principal da família, o gado pasta nas várzeas durante o Inverno e parte do Outono, recolhe, ao anoitecer, às «lojas», por debaixo da casa. Os gados e pastores sobem às «brandas» na Primavera e Verão, onde se encontram as pastagens de maior altitude.
Paisagem e comunidade constituem um todo e são hoje uma herança a conservar, pelo que é necessário garantir uma melhor qualidade de vida a essas comunidades.
As montanhas do Norte de Portugal que pertencem aos contrafortes do maciço central da
Meseta Ibérica, orientam-se em formações contínuas no sentido nordeste-sudoeste (Serras do Gerês, Amarela, Barroso, Marão, Alvão, Cabreira, Padrela, Montemuro, Arada, Caramulo, Lousã, Açor, Estrela, Gardunha, Malcata), pelo que são uma barreira aos ventos marítimos, o que provoca a condensação da humidade transportada por esses ventos, que chegam mais secos ao interior de Trás-os-Montes, que por isso apresenta nas encostas voltadas a sul, aspectos semelhantes aos do Algarve.
A paisagem de Trás-os-Montes tem características continentais. A agressividade do clima, de extremos invernais e estivais, está bem patente na sentença popular (nove meses de Inverno e três de Inferno».
Em Trás-os-Montes, os campos de centeio, os matos que se usam para casas de gado, e os pequenos bosques ocupam as calotes convexas das colinas e os planaltos, enquanto os lameiros, prados permanentes, por onde escorre a água para evitar a condensação da humidade provocada pelas baixas temperaturas, ocupam as encostas.

5. Há muito que a pastorícia, e não a floresta, domina a Serra da Estrela. Por esse facto, o heróico Viriato, símbolo da resistência às legiões romanas, era um pastor. Na serra, para além dos valores telúricos existentes, como o vale glaciar onde nasce o rio Zêzere, surgem, em campo aberto, folhas rectangulares de milho e azevém que contrastam com os socalcos, suportados pelos característicos muros de pedra seca, dos vales de Loriga e Alvoco.
Na Cova da Beira, a sul da serra, a cerejeira é uma presença notável na paisagem. Nas serras do litoral (Candeeiros e Aires) surgem interessantes paisagens resultantes da difícil humanização dum maciço calcário crosionado e batido pelos ventos mareiros. A pecuária é a principal actividade, disciplinada por «cercas» limitadas por muros de pedra solta de pequena altura, de forma rectangular ou irregular. Na paisagem cársica das serras de Aires e Candeeiros surgem extensas superfícies cobertas por um matagal baixo de carrasco (Quercus coccifera), donde emergem grupos de sanguinhos das sebes (Rhamnus.alaternus). Nas zonas mais frescas crescem a aroeira (Pistacia lentiscus), o zambujeiro (Olea europaea) e alguns carvalhos cerquinho (Quercus faginea).

6. Abaixo do Tejo dominam os montados de sobro e azinho. São sistemas agro-silvo-pastoris eficientes e edquilibrados, quando bem conduzidos, que se formaram a partir da mata primitiva: a charneca. Primeiro, foi aberto o de azinho para alimentação da vara de porcos e, mais tarde, no litoral, o de sobro, quando em meados do século XIX começou a valorizar-se a cortiça.
O montado evita que as quedas pulviométricas mais fortes batam directamente no chão,
protegendo-o da erosão. A folhada, caída ao longo do ano, beneficia o teor em matéria orgânica do solo, aumentando a sua capacidade de retenção para a água. Por sua vez, a sombra das copas evita a excessiva evaporação da água do solo, diminuindo as perdas de tão precioso líquido.
As serras do Sul, onde a queda
pluviométrica é idêntica à do Norte (Arrábida, São Mamede, Ossa, PorteI, Cercal, Monchique e Caldeirão), são reservatórios de humidade, apesar da sua pequena altitude, e dão origem a paisagens que se diferenciam claramente das paisagens de planície ou de colinas, das quais se elevam.
As terras de maior produtividade, como os barros de Beja, são grandes estepes cerealíferas.
No chamado “barrocal” algarvio, aparece a «cerca» mediterrânica, constituída por muros baixos de pedra solta limitam folhas de cultura, cerealífera ou de ferrejo, povoadas por árvores dispersas: alfarrobeiras, amendoeiras e figueiras. Na serra do Algarve domina o sistema charnequenho onde a caça e a recolecção, de que se destaca o mel e o medronho para aguardente, conjugam-se com a exploração da mata (madeira, lenha e cortiça) e a seara. Nas dunas, domina o pinheiro manso. Os sapais ocupam extensas restingas defendidas por cordões dunares e são de uma grande importância no equilíbrio e sustentabilidade ecológica da costa.

7. À volta das cidades, de Norte a Sul de Portugal, relacionadas com a vida urbana e elo desta com o mundo rural, encontramos as "quintas de recreio" que são microcosmos que repetem, num lugar ameno e com muita água, os elementos fundamentais da grande paisagem: a horta, o pomar, a mata, o jardim de flores e aromas. Na quinta é importante a rede de caminhos que conduz a lugares amenos, onde se passeia e descansa à sombra das latadas e dos caramanchões.
O sistema de circulação e armazenamento da água com caleiras e tanques com caleiras, como que orienta todo o traçado da quinta. A abertura de vistas para o exterior, procura a contemplação panorâmica a ligação ao mundo exterior, sendo conseguida com miradouros e janelas abertas nos muros.
A concepção das quintas de Norte e Sul é idêntica, apenas alterada pela maior ou menor abundância de chuvas; o que exige maior ou menor armazenamento de água, por isso, no Norte é mais importante a fonte a drenagem e no Sul, o tanque e a distribuição. A quinta de recreio é um exemplo da unidade cultural do País apesar das marcas das diferenças geográficas que apresenta.

8. As paisagens tradicionais formaram-se tendo em consideração as características biofísicas do território, a necessidade de obter produtos essenciais às populações instaladas e segundo a maneira própria de cada comunidade entender a vida e o mundo. A construção da paisagem rural, é portanto, desde o início da humanização da terra, um acto cultural que se prolonga no plano das artes e na contemplação estética e poética dessa mesma paisagem.
Os parques e reservas naturais desempenham um papel relevante na Conservação da Natureza e na defesa da paisagem. É, no entanto, necessário estender a todo o território urna política de ordenamento que possibilite a biodiversidade, o equilíbrio ecológico e a polivalência dos espaços e em que não se deverá esquecer o perfil das vilas e das cidades.
É necessário realçar que as cidades e vilas, ordenadas como conjuntos orgânicos a que corresponde sempre um certo princípio de organização social, nasceram integradas na paisagem rural. O desenvolvimento sustentado exige uma visão global de Conservação da Natureza e de Ordenamento do Território, em que a defesa das paisagens tradicionais, alargada a todo o território, tem especial importância.

Original na página da ASSOCIAÇÃO DE ESTUDOS PORTUGUESES:
http://www.sobre-portugal.pt/portugal/territorio_paisagem/paisagens_naturais.html

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