Sexta-feira, 16 de Abril de 2004

O ataque à REN e à RAN!

 
Até o Presidente da República!
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 16 de Abril de 2004

Não há muitas pessoas que eu admire e tenha admirado sempre, consistentemente ao longo dos anos, na política portuguesa. Gonçalo Ribeiro Teles é uma dessas pessoas. Muitas vezes me pergunto como não seria Portugal hoje, e quanto melhor não seria, se quem decide tivesse gasto tempo, atenção e respeito, a escutar o que ele foi dizendo, os avisos que foi fazendo ao longo dos anos e dos governos, e que uma atitude de leviana sobranceria quis sempre desclassificar como ideias de um lunático. E, todavia, não há ninguém mais terra-a-terra do que ele: ele previu o que ia ser o desastre da primeira geração de ETAR (estações de tratamento de águas residuais), onde se gastaram milhões e milhões para ter de refazer tudo novamente; ele previu as cheias catastróficas que aconteceriam nos anos de mais chuva devido à impermeabilização dos solos com a construção em leitos de cheia ou até sobre linhas de água; ele explicou porquê que a floresta iria continuar a arder; ele avisou contra o abandono da agricultura, que conduziria, a jusante, ao congestionamento dos grandes centros urbanos e à desocupação do interior do país; ele augurou a inutilidade caríssima em que o Alqueva estava destinado a tornar-se. E muito mais, que os decisores se recusaram a escutar, presos como sempre estiveram dos "lobbies" do turismo, da construção civil e das autarquias - as clientelas onde se cimenta o seu poder.

Há 25 anos, um homem de visão - Francisco Sá Carneiro - chamou-o para o Governo da primeira AD, e essa sua única e distante passagem pelo Governo marcou o início - e, de facto, além do breve ministério de Carlos Pimenta -, o único período em que o país teve verdadeiramente um ministro do Ambiente e uma política ambiental. Dessa passagem pelo poder, Ribeiro Teles deixou, entre outros legados, uma legislação decisiva: a criação das zonas protegidas da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e da Reserva Ecológica Nacional (REN) - zonas essas nas quais a construção foi ou proibida ou condicionada. Essa simples legislação inscreveu-nos na lista de países minimamente civilizados em matéria de protecção ambiental e ordenamento do território - aqueles onde não é possível construir em qualquer lado, mas apenas onde o benefício económico da construção não ultrapasse de forma chocante os malefícios causados à paisagem ou aos recursos naturais.

Se Portugal não se encontra hoje já totalmente vandalizado, se ainda restam algumas zonas que servem todos e não apenas alguns, deve-se à existência da RAN e da REN. Mas, ao longo dos últimos 25 anos, esse derradeiro obstáculo tem sido, disfarçada ou descaradamente, combatido por autarcas, governantes e especuladores imobiliários. Precisamente porque essas zonas foram preservadas, é aí que se concentra a cobiça voraz da construção. Basta olhar para os anúncios dos novos aldeamentos turísticos para ver como eles valorizam as "paisagens preservadas" - que o eram até aí.

Pois bem, parece que, no segredo do seu gabinete, o desastroso ministro do Ambiente que agora nos calhou em sorte prepara a revisão da legislação referente à RAN e à REN. E, quando digo que prepara a sua revisão, todos sabemos à partida, a começar pelo próprio ministro, que a ideia não é obviamente a de reforçar os comandos legislativos e muito menos - credo! - alargar as zonas actualmente abrangidas pela RAN e REN.

Sabendo disto, um grupo de pessoas, encabeçadas pelo próprio Gonçalo Ribeiro Teles, entregou anteontem a Jorge Sampaio um abaixo-assinado, defendendo que, ao menos, a discussão sobre a revisão destas leis se faça à luz do dia, para que não sejamos depois confrontados com um facto consumado ou então, como é costume nestas matérias, não apareça feita uma proposta devastadora que depois, "conciliatoriamente", o ministro expurgará de algumas coisas mais chocantes e, declarando que já cedeu o suficiente, transformará na lei terminal da RAN e da REN.

Ora, parece que o sr. Presidente da República, ocupado em mais uma Presidência Aberta sobre o ambiente (ele que nunca foi conhecido por ser propriamente um defensor da causa) não recebeu lá com muito boa disposição o tal abaixo-assinado. Pelo menos, a avaliar pela resposta que deu no momento. Disse o Presidente que "o debate é necessário", mas logo acrescentou a conclusão do debate, do seu ponto de vista: "Mas o país não pode ser uma reserva total, de norte a sul, que inviabilize a presença de cidadãos e o seu próprio desenvolvimento." Esta simples frase, vinda do Presidente da República, significa a morte anunciada da RAN e da REN. Significa o fim de um quarto de século de luta contra a selvajaria e a destruição paisagística e ambiental do país. É música para os ouvidos do ministro Theias, do Governo de Durão Barroso, para os autarcas, construtores e especuladores. É um verdadeiro grito de "fartar, vilanagem!". Se alguém contava com a oposição do Presidente para travar as sucessivas investidas deste Governo contra o património natural do país - basta citar a entrega da competência sobre os Parques Naturais às autarquias, o seu principal inimigo - pode esperar em vão. Sampaio já disse claramente de que lado está. E, infelizmente, está do lado errado.

De facto, nesta pequena e demolidora frase de Sampaio está resumido o essencial dos argumentos de todos os que desde sempre se têm batido por um Portugal sem regras de construção e sem protecção alguma. Entre esta frase e a do autarca de Lagos, que aqui citei há semanas e que dizia, a propósito da construção desejada para a ria de Alvor, que "a natureza também tem de dar alguma coisa ao homem, em troca" (em troca de quê?, pergunto), não há qualquer diferença de filosofia ou de estratégia.

Tal como os autarcas algarvios, Jorge Sampaio parece achar que a construção - qualquer construção e em qualquer lado - é sinónimo de "desenvolvimento" e que as leis que a restringem em determinadas situações ou locais são um obstáculo ao desenvolvimento.

Saberá o Presidente, por exemplo, que a tal "reserva total, de norte a sul do país", abrangia, quando a RAN foi constituída (entretanto já foi roída mil vezes), apenas 12 por cento, não da área do país, mas da área com aptidão agrícola - ou seja, e daí a designação como "reserva", representa o último reduto da agricultura viável e sustentável, como os terrenos da Companhia das Lezírias que, por dar lucro ao Estado, ser bem gerida e constituir um laboratório de agricultura, o Governo se prepara para retalhar e privatizar, a favor de projectos onde a componente agrícola será "sustentada" pelo imobiliário? E saberá que a zona da REN ainda representa menos do que isso? Em que dados de ciência ou de observação se sustenta Jorge Sampaio para denunciar a existência de uma "reserva total" - ele não vê o que está à vista? Não foi o mesmo Jorge Sampaio quem, há dois anos atrás, ficou chocado com o que viu em Armação de Pêra, no Algarve, descrito nas brochuras turísticas como a "typical fishermen's village", e onde hoje nem se consegue perceber de que lado fica o mar no meio daquele caos urbanístico e a principal praia que servia a povoação foi fechada devido a desabamento de terras motivado pelo excesso de construção até à falésia? Saberá o Presidente que aquilo ainda não é nada, comparado com os projectos aprovados e que, a serem construídos, representariam o triplo do que já está construído no Algarve? Alguma RAN ou REN deteve isso? Não, e é precisamente por isso e porque os promotores não são parvos, que eles desejam tanto o fim da REN e da RAN para poderem agora tomar posse do que resta - a ria de Alvor, a ria Formosa, o Parque Natural da Costa Vicentina e Sudoeste Alentejano.

Se porventura se dignasse escutar o que diz Ribeiro Teles, o Presidente ouviria que, ao contrário do que afirma, não é a construção turística sem regras que vai fixar populações no interior, excepto os emigrantes sazonais da construção civil. O que fixa populações é a vida que se estabelece em roda do mundo rural, o qual não existe sem agricultura. Afinal, senhor Presidente, fizemos o Alqueva para quê - para fixar populações agrícolas e das actividades afins, no Alentejo, e invertermos a tendência galopante para sermos cada vez menos auto-suficientes em produção alimentar, ou para abastecer campos de golfe e aldeamentos turísticos?

Pergunto porque se dá Jorge Sampaio ao trabalho de se desgastar tanto em Presidências Abertas sobre o ambiente, quando, afinal de contas, quando se chega à questão decisiva que é a de escolher entre os interesses económicos em jogo ou a defesa de uma pequeníssima parte do nosso património natural e do mundo rural, ele escolhe o lado errado.

Subscreva o manifesto acerca deste tema em:
http://www.ipetitions.com/campaigns/manifestoREN_RAN/
 

Publicado por Armando às 20:17
Link do artigo | Comentar | Adicionar aos favoritos
3 comentários:
De Anónimo a 14 de Julho de 2004 às 23:01
Cara Catarina,
Não me parece que seja por falta de terreno para construir que o interior está cada vez mais desertificado. O interior está cada vez mais despovoado porque não estamos a saber aproveitar as suas potencialidades e caracteristicas próprias, de maneira a criar as oportunidades e a consequente riqueza que possa manter as pessoas nas suas terras de origem. A solução não passa por mais construção à custa de um património que é de todos. A solução passa pelo ordenamento e pela aposta na valorização de espaços, gentes e culturas próprias.
É certo que é sempre possível proceder a algumas alterações de pormenor, de maneira a tornar a REN e a RAN mais credível e ajustável à realidade. Mas depois há que saber fiscalizar e respeitar o cumprimento das regras de ordenamento do território, de maneira a que não se cometam autênticos crimes ambientais e de lesa património, fazendo com que se tenha a sensação que afinal as leis nunca passam do papel.
Respeitando o problema que diz ter de falta de terreno para construir, já pensou na hipótese de reabilitar uma dessas casas antigas e degradadas, por vezes belos exemplares da nossa arquitectura tradicional, que só os ricos das cidades parecem querer e que os naturais deixam quase sempre ao abandono e à ruina? Talvez fosse a solução para muitos dos problemas idênticos ao seu, ao mesmo tempo que contribuiria para a recuperação e valorização do património dessas regiões.
Saudações amistosas,
AF AF
(http://raizes.no.sapo.pt/)
(mailto:arjo9@hotmail.com)


De Anónimo a 12 de Julho de 2004 às 22:00
Sou uma jovem de 26 anos, tenho andado há cerca de 3 meses há procura de terreno para construir. E está tudo sobrevalorizado. Além disso, há terrenos junto a estradas de alcatrão que pertencem à REN ou A RAN, e outros com acessos péssimos que são de construção. Julgo que a revisão deve ser feita nesse sentido. Além disso, se não querem que o interior fique às moscas, e apenas com casas para os riquinhos e importantes irem para lá passar o fim-de-semana, devem criar as condições para que tal não continue a acontecer.catarina pereira
</a>
(mailto:catilp@sapo.pt)


De Bruno Prates a 4 de Novembro de 2009 às 23:53
olá a todos. sou do algarve ,tenho um terreno rustico com um hectare e meio abranjido pela ren. quando comprei estava abandonado ,com arvores centenarias a morrerem por falta de cuidados ,os rebentos bravos estavam a sufocar os troncos mansos.havia lenha seca e tojos por todo o lado ,ideal para ser totalmente consumido por um incendio no verão.reconstrui os muros em pedra que estavam desfeitos.cuidei das arvores e tornei-o num sitio mais bonito conservando a frora existente. sou amante da natureza e nãõ concordo de todo com a politica da ren e ran ,pois acredito que limitar os proprietarios das terras ao abondono das mesmas por quase não poderem lá´respirar não será´a melhor solução. deixem as pessoas viver em harmonia com a natureza pois existe mta gente como eu que só queria poder fazer uma casinha para lá´morar sem pensar em futuro negocio. muita gente que respeita a terra sem ser conservacionista ou ambientalista.muita gente que não é rica o suficiente para poder comprar um terreno onde possa fazer uma mansão.

Bruno Prates


Comentar artigo